©Joaquim Palminha Silva |
Segundo F. Dostoievsky, no romance «Os Irmão Karamazov», assim falou a Jesus Cristo o Grande Inquisidor:
«[...] Então tu não vieste realmente senão para os eleitos? Mas, se assim é, há aí um mistério que não podemos perceber; e, então, nós também temos o direito de pregar um mistério e de ensinar aos homens que não é o livre julgamento dos seus corações nem o amor o que importa, mas esse mistério, ao qual eles se devem submeter cegamente, mesmo contra a sua consciência. Eis o que fizemos. Corrigimos a tua obra e fundámo-la sobre o milagre, o mistério e a autoridade. E os homens rejubilaram por serem de novo conduzidos como um rebanho e libertados desse dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão para proceder assim? Fala! Não é amar a humanidade compreender a sua fraqueza, aligeirar com ternura o seu fardo, tolerar mesmo que a sua fraca natureza peque, contanto que seja com o nosso consentimento? Porque vens entravar a nossa obra? E porque me fitas silencioso, com esse olhar perscrutador e terno? Zanga-te, antes; eu não quero o teu amor, porque eu próprio não te amo. E de que me serviria esconder qualquer coisa de ti? Não sei a quem estou falando? Tudo o que poderia dizer de antemão o saberias. Mas talvez o queiras ouvir da minha boca. Ouve então. Nós não estamos a trabalhar contigo, mas com ele, eis o nosso mistério…».
Na impossibilidade de reproduzir todo este notável monólogo da história da literatura russa, e universal, e do pensamento religioso e ideológico, bem como suas inerentes dúvidas, fixei-me nestas linhas.
O Grande Inquisidor é um velho cardeal espanhol da época mais cruel e fanática da Inquisição Ibérica que, na véspera do seu aparecimento “em cena”, nas páginas do romance, tinha acabado de mandar queimar uma centena de hereges ad majorem gloriam Dei.
Convém tentar compreender o pensamento do cardeal, através das suas palavras dirigidas à imagem muda de Jesus Cristo pregado num grande crucifixo. Ele acreditava que a longa experiência da sua vida (este cardeal teria perto de noventa anos), ensinara-lhe que a grande maioria da Humanidade é composta por seres fracos, sem vontade própria, sem energia, absolutamente incapazes de se perfilarem no escasso número dos que são realmente eles próprios. O que a imensa maioria deseja é precisamente não ter que usar a liberdade de consciência, que está na base do Cristianismo, mas sim colocar essa mesma liberdade nas mãos de um autoritário senhor que os governe e lhes assegure o pão de cada dia, ganho com o trabalho de cada um. São estes os que preferem ao pão celeste (a vida espiritual, a abnegação, etc.), o pão terrestre (os prazeres da estreita materialidade, o encolher de ombros, etc.).
Em face da enorme maioria dos fracos, o Grande Inquisidor pensa que Jesus Cristo se enganou, ao imaginar que era possível para todos o que já era difícil de atingir apenas por alguns. Vista assim a questão, o Grande Inquisidor não está disposto a cometer esse erro, exactamente por amor dessa fraca Humanidade, para a qual não há maior tortura do que ter de distinguir, em plena liberdade de consciência, o bem do mal!
O Grande Inquisidor pensa, por conseguinte, que a única forma de organizar a sociedade é transformá-la num imenso rebanho, pastoreado por uma escassa minoria de homens que por inteiro se votariam ao sacrifício de não poderem considerar os outros homens, a maioria, seus iguais e de terem de suportar sozinhos, o pesado fardo de separar o bem do mal. O Grande Inquisidor sabe perfeitamente que o seu trabalho será sempre incompleto, dado que de vez em quando, uma parte do rebanho se insubordina. Porém, para reduzir o número e a frequência dessas insubordinações, lá está o Tribunal do Santo Ofício, os autos de fé, as fogueiras e a morte.
A ideia do Grande Inquisidoré baseada na existência espiritual de um Deus terrível (segundo a tradição hebraica), embora justiceiro, todavia um Deus que não perdoa, pois não acredita na Humanidade que criou. Eis a razão porque o velho cardeal levanta o olhar acusador e rude para a humanidade compreensiva que existe em Jesus Cristo, que do seu crucifixo o olha doce e serenamente.
Nos trágicos dias que atravessamos, este trecho de «Os Irmãos Karamazov» parece-me cada vez mais actual, e elucidativo: - Estão a transformar-nos, paulatinamente, num rebanho! Estamos aptos a ser democraticamente escravizados! Os nossos próprios protestos têm o sabor da derrota, do desespero que consente, não do protesto radical da revolta em acção!
Estamos prontos a ser rebanho! – Naturalmente saído das falseadas urnas de voto, já só nos falta o Grande Inquisidor?