©Joaquim Palminha Silva |
Há muitos anos que trabalho e vivo neste Farol, “plantado” nos rochedos isolados a sul, desafiando as ondas e os temporais. No início ainda ia a terra e frequentava os serviços públicos e privados da vila de pescadores. Depois, com o rodar do tempo, as gentes da terra com a sua coscuvilhice bacoca, despeitados por nada saberem da minha vida, desataram a inventarem a meu favor uma história de vida trágica e, assim iam tentando cruzar os umbrais da minha existência, imaginando que vim para este trabalho solitário do Farol para fugir de terrível pecado e, com assento nestas fantasias imbecis e impiamente crédulas, conseguiram afinal de contas obrigar-me ao afastamento do convívio humano.
De resto, fui severamente penalizado pelas circunstâncias. Em toda a minha vida nunca conheci, sob qualquer das suas modalidades, a ternura de uma família e, sendo órfão ainda criança, nem de meus pais tenho mais do que enevoadas recordações.
Devo dizer que as gentes da vila, almas grosseiras e balouçando fantasmas, fazendo da religião uma coisa desordenada e violenta como as tempestades, resolverem demonstrar-me quanto me detestavam, à medida que cresciam os significados das histórias mentirosas que contavam a meu respeito... Nesta ordem de ideias, a marginalização de que fui alvo iniciou um percurso irreversível: - Eu próprio acabei por decidir reduzir ao máximo toda a espécie de convívio com semelhante gente.
Com o passar dos anos, excepção para a entidade patronal que me enviava todos os meses um sobescrito com o dinheiro do salário, a minha existência de faroleiro, a minha barba branca, as minhas camisolas de espessa lã e gola alta, as minhas calças de veludo azul e as minhas resistentes botas, fizeram da minha pessoa uma “lenda” viva de não sei quantos disparates, de um sem número de absurdas e salgadas histórias... E a aversão à minha pessoa, fundamentada em nada, ganhou raízes, cresceu como um ciclone, pelo que o mover de fantasmas em meu redor tornou-se uma “realidade” para todos, menos para mim.
Detestarem o faroleiro e demonstrarem-lhe isso mesmo, dia após dia, deve ter sido um passatempo local, entre excessos de cerveja, alguma violência doméstica ou de praça pública, tudo pontuado pelos casamentos, baptizados, enterros e uma ou outra cerimónia comunitária que, por curiosidade, eu fui observando do cimo do Farol.
Deixei, portanto, de descer à vila e, através do telefone, comecei a encomendar e a adquirir os víveres e outras coisas de que ia necessitando... Em dias de mar calmo, um empregado do armazém de mercearias deixava encaixotadas as minhas compras sobre os rochedos, mesmo nos primeiros degraus da escada talhada na pedra, que conduz à base do Farol...
A escassa vida social da população da vila (pobres pescadores e dois ou três armadores mais abastados) bastou-me para entender a natureza bárbara do mundo, e dos seus engenheiros de ilusões sociais e culturais. Devo dizer que entrei para o serviço do Farol (após um rápido curso) aos 24 anos de idade, directamente vindo do mar e de um navio da marinha mercante. Dir-se-á que o meu mundo é a rocha calva e escorregadia donde se ergue o Farol, o ímpeto das águas em dias de tempestade, escumando, enrolando-se e procurando despedaçar esta construção... Mas quem assim pensar engana-se redondamente, pois percebi que não há nada de novo na natureza humana, para lá do que existe concentrado, resumido, sintetizado nas gentes da vila e, por isso, dediquei a minha vida a outras ideias…
O meu celibato de faroleiro foi preenchido por uma certa classe de leituras. Acumulei argumentos sobre a maldade do mundo, mas como sou fraco orador e, como já disse, não completei a minha vida a conviver com as gentes da vila, encontrei na existência humana uma passagem melancólica, espécie de antecâmara experimental de cada um que, creio piamente, só será desactivada após a morte. Seguindo esta ideia, os meus deleites intelectuais foram sempre o prelúdio do tédio, e o meu único objectivo de vida, o meu efectivo entusiasmo, foi salvar barcos, tripulantes e passageiros dos escolhos à flor da água. Devo ter salvado (talvez)
milhares de embarcações e seres humanos de uma morte horrível, zelando pelo bom funcionamento do apaga-acende das luzes do Farol!
Suponde todos os contentamentos, todas as consolações e sentimentos que a vida pode gerar para os outros e para vós mesmos, e achareis que umas e outros não suprem, apesar da minha solidão sentimental, a máxima energia e intensidade do que existe de bom e útil na minha vida de faroleiro. Acredito que por um acaso (creio que Deus trabalha também com os acasos!) foi-me dado ser o intermediário entre o mar, a terra e o Céu...
Creio mesmo que Deus, considerando a minha marginalidade face à imunda e extrema depravação moral da vila (do mundo), me entregou uma tarefa terrena com algo de conteúdo angelical, apesar da terrível solidão desta profissão. Isto é, fez de mim uma variante marítima do «anjo da guarda», seguramente dada a minha experiência e anos de trabalho em muitos navios, e tendo navegado em todos os oceanos da Terra.
Hoje, mais solitário que nunca, velho, gasto e já doente, depois do esplêndido exercício de décadas e décadas de faroleiro, tive de comunicar para terra, para o meu empregador, a estranha paralisia que me vai prendendo os movimentos, de forma a ser substituído rápido nesta tarefa de todos os dias e todas as horas, sem prejuízo para a navegação, pois sei que posso estar a chegar ao fim.
Por isso mesmo, apesar do mistério que, sem fundamento, também pesa sobre a minha terminal existência, a recompensa do Alémseguramente virá suprir a falta de convívio com as gentes da vila, com o mundo, bem como as consequências forçosas que me levaram a evitar a maioria das pessoas e a quase totalidade das suas opiniões.
Comigo, porém, morrerá uma “raça” de faroleiros de vastos domínios marítimos, grande porção de estoicismo, enorme temperamento aguçado no seio das tempestades... Comigo morrerá o orgulho de uma profissão, muitos degraus acima da banalidade dos ofícios da sociedade.
Mas, (meu Deus!) subjugado pela solidão, apercebo-me de ter acabado de cometer o pecado de orgulho para com o próximo! Não terei abusado do abraço do mar sem fim, abraçando o Infinitoantes de autorização para isso? Antes de tempo? Faroleiro insolente!… Pensei…Duas lágrimas correram-me pelas faces, talvez por ser 24 de Dezembro e estar sozinho…
A minha consciência, entretanto, apagou-se, face ao pandemónio e brutalidade das vagas contra o Farol! Levantara-se tempestade capaz de engolir uma cidade. Pensem o que quiserem, mas quando através de uma luz se seguram vidas num navio, à flor das enormes vagas, há uma certa emoção! Um relâmpago incidiu sobre a crista de gigantesca vaga, vi então num relance a aflição do navio que, translúcido, enviava para terra luzes de S.O.S. de curta intensidade. A embarcação solicitava indicações sobre os rochedos que a tempestade escondia sob as águas revoltas. O pequeno navio da marinha mercante corria o risco de ser despedaçado. O ar húmido e salgado estava repleto de angústia. Levei as mãos aos manípulos de emergência das luzes e, em «Morse», transmiti a informação que me pediam, acrescentei uma saudação à tripulação, dizendo-lhes que já fora marinheiro e sabia o que estavam a sofrer e a luta que travavam, opondo a sua colectiva vontade à vontade da tormenta! Durante horas segui o navio de passageiros, dando-lhe o que podia, o meu olhar protector através da luz do Farol… O vento abrandou, o navio afastou-se daquele pedaço de costa traiçoeiro… Liguei o manípulo das luzes no automático e, fatigado, adormeci vestido sobre o cobertor da cama…
Acordei a pensar na partida… Esperava que me viessem substituir a todo o instante… Era dia de Natal, isto é, 25 de Dezembro, podiam ter-se esquecido… Lá em baixo, o mar chicoteava a rocha, mais manso, ignorando o que fizera a noite passada! Abri a porta do varandim do Farol, e debrucei o olhar para baixo… Vi então uma espécie de cesto à porta do Farol. Desci o caracol das escadas, ansioso sem saber porquê. Nunca tal me acontecera em tantos anos. No cesto, um cartão com desenhos alusivos à quadra natalícia, dizia: «Cabaz de Natal. Oferta da tripulação do navio mercante “N ª. S.ª do Amparo”. Ao faroleiro de serviço na noite de 24 de Dezembro. Autêntico “anjo da guarda” em noite terrível. Feliz Natal!» … Deveriam ter alcançado o porto, a meia dúzia de minhas mais a sul. O «Cabaz de Natal» tinha tudo o que os cabazes desta natureza devem ter: umas belas postas de bacalhau seco, garrafa de vinho do Porto, bolo-rei, broas de milho, garrafa de azeite, passas de figo, pão, fruta cristalizada... Enfim, já disse, tinha tudo! A minha missão chegara ao fim com esta tempestade, pensei! Acendi um fósforo, e aproximei-o com a mão em concha do cachimbo… Afinal de contas sempre me haviam destinado a tarefa de «anjo da guardamarítimo». Agradeci a Deus (chiu!) em silêncio, e sorri a esta mesma ideia do «anjo da guarda marítimo» …
Lá em baixo chegava uma carroça com um jovem de saco de viagem ao ombro. Pensei: é o novo faroleiro. Na estrada de terra batida, as gentes da vila encontraram tempo para virem à minha partida. Depois de tanta mentira sobre mim, algum refrigério nas trevas interiores em que vivem os deve ter comovido. Pela tripulação, souberam do navio e do «Cabaz de Natal», narrando depois aos presentes (e aos vindouros) a primeira verdade sobre o faroleiro: - «E ele podia ter ficado entre nós, mesmo depois de sair do Farol!»...
Estas palavras são parte integrante da narrativa... «Meu Deus! – Bendito seja o teu santo nome, porque me deste a oportunidade de ver a tarefa que, durante muitos anos, só a mim haveis confiado!». Já dentro da pequena caleche que me levou para a cidade, olhei para trás. Umas centenas de figuras, que a distância distorcia, acenavam-me com lenços brancos!