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Diário do Alentejo: Crónica de Paulo Barriga, em Paris, enquanto se espera pela classificação do Cante como património da humanidade

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Crónica de uma candidatura anunciada

Paulo Barriga

Paris, 26 de novembro. Hoje é quarta-feira. E isso é um problema levado da breca. Não é que as quartas-feiras não sejam dias tão benignos e indispensáveis como todos os outros. Antes pelo contrário. Mas foi hoje, que é quarta-feira, que ficamos a saber que Portugal fica algures situado entre a Polónia e o Qatar. Um rasgo geográfico improvável que advém da organização do mundo por ordem alfabética. Uma simpatia da Unesco para como os seus estados membros, quando todos eles se juntam em Paris, debaixo do mesmo telhado. Zangas e amuos à parte.
Não há nada de especial, e muito menos de reprovável, em ensanduichar Portugal entre a Polónia e o Qatar. O problema é que hoje é quarta-feira e para escrever a palavra Portugal começa-se com um “pê”, que é a décima sexta letra do abecedário, tomando como válida e necessária a existência do "capa" no nosso alfabeto. O que implica também que Portugal apenas será chamado a dizer de sua justiça perante o comité intergovernamental de salvaguarda do património cultural imaterial lá mais para diante. Exatamente na sua alfabética vez. Embora hoje seja quarta-feira.
A sorte, se é que sorte se lhe pode chamar, é que a Polónia, vizinha do lado esquerdo de Portugal na bancada geoestratégica da Unesco, não trouxe qualquer bem para inscrever na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Portugal sim, trouxe o cante. Mas antes do cante soar em Paris temos que saber o que dizem os membros desta sessão, a nona, sobre as festividades da Virgem da Candelária de Puno, que acontecem no Peru. Ou sobre as expressões jocosas que se dizem tradicionalmente no Níger. Ou sobre os rituais em busca da chuva no Irão. Ou sobre a tradição da sauna de fumos na Estónia. Ou tão apenas sobre o reconhecimento da roda de capoeira do Brasil. E hoje é quarta-feira.
Bem vistas as coisas ou bem-feitas as contas, antes do cante subir ao palco, os holofotes do comité da Unesco vão pender, primeiramente, sobre 34 bens culturais originários de todas as partidas do mundo (são 45 as nomeações, mas 10 vem depois do cante ser anunciado, como é o caso da arte da sagacidade no Uzebequistão, e nessa altura já será rija a festa). E depois sim, o aguardo anúncio tão exaustivamente prognosticado desde finais de outubro, quando uma comissão internacional de peritos nestas matérias do imaterial se pronunciou favoravelmente acerca da mundividência dos cantares do Alentejo. 
O problema, bem se sabe, é que hoje é quarta-feira e talvez o expediente dos trabalhos desta sessão não seja rápido o suficiente para avaliar o cante durante o dia de hoje. O que acontecerá necessariamente amanhã. Mas hoje é que é quarta-feira. Mesmo. Nem terça, nem quinta: quarta-feira. O dia em que as notícias, as fotografias, os desenhos e tudo o mais que está dentro das páginas deste jornal, inclusivamente esta crónica tão ansiosa como desnecessária, vão para dentro dos rolos da máquina impressora. É assim a vida aflita e alvoroçada do único “diário” do mundo que fecha a edição à quarta e sai à sexta-feira.


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