Infância
É na infância que nos violam… É aí, nesse estado de desconhecimento do mal, que o despotismo “esclarecido” dos adultos se esclarece sobre nós. A força cega da tradição, o domínio brutal dos adultos qualificados, o seu grau de cultura exerce-se desapiedadamente sobre o tempo da infância, para lhe explicar todas as barreiras sociais a que deve obedecer.
A infânciaé um tempo e lugar semelhante a curral. - Aí, aborregado, cada qual é amestrado sob o chicote da “boa educação”. Enquanto infantis, somos os ratos de laboratório onde os adultos se pretendem vingar de não os terem deixado praticar a sua própria infância.
Ser infantil é ser desprotegido, porque se tem obrigações que o tamanho físico não comporta e a experiência de vida não consente. Seguramente por isso, a infânciaé o lugar de todas as agressões, o “território” devastado pelo ódio e pelo medo, onde nenhuma «Convenção de Genebra» intervém…- A infânciaé o lugar onde se “fabricam” miniaturas de pessoas!
Na infância recebemos o mundo das mãos dos adultos, não como uma oferenda, uma prenda preciosa que se entrega a um recém-chegado que se desejou nos viesse alegrar com a sua inocência, antes como um imperativo categórico, uma obrigação dolorosa e sem retorno, que fundo e sem piedade nos irá traçar todas as rugas do rosto.
Dizem-nos: todos os homens nascem livres e iguais. É possível… Mas vem a infância,e no seu seio é plantada a semente do mal: - Cercam a infância com o arame farpado das regras de conduta, vigiam a nossa forma de agir, encurralando-a em projectos de sociedade que não escolhemos. A pretexto de civismo e “bom comportamento”, manipulam em cada criança o crescimento do adulto livre e bondoso que poderia acontecer.
A infância é o território onde se situa o campo de trabalhos forçados, onde nos ensinam a vaguear acorrentados a ideias de sociedade de que nada sabemos e, a pretexto disso, acorrentam-nos a um sistema de valores escolhido muito antes de nós mesmos termos nascido. Como quem diz: - «A Democracia é para adultos!», por isso, «Crianças, afastai-vos!».
Recordar a infância, é lembrar o tempo em que começamos a deixar de ser nós próprios, para nos transformarem em peças do mecanismo social, funcionando com umas rações diárias de liberdade individual e uns banhos higiénicos (regulados pela Lei e pela Ordem!) de liberdades colectivas. Tudo isto para nos dizerem, desde os primeiros tempos de criança: «Habituai-vos à concedida graça de escolher a vossa desgraça!».
Apesar da “dura escola da vida” e do chicoteado ensino da obediência, nem todos chegam a adultos…
Há pessoas de um infantilismo que “mete dó” à sociedade, que nunca aprendem a ser adultos e realistas, que estão sempre a sonhar com dias melhores, que não aceitam o que existe só porque existe, antes acreditam no que deveria ser, no que deveria existir…Há pessoas que vivem a pensar «se…»…
Estas pessoas, que parece “não terem crescido”, como dizem os outros, vivem embrulhadas no sonho de crianças e conservam uma inocência tal, que é considerada pelos outros como se fosse deficiência física… Pois bem, estes seres que permaneceram infantis, nunca ocuparão na vida um lugar definido… Estes seres, trazem no olhar claridades inconvenientes, que a escuridão da vida não permite por muito tempo. Os donos do “bom senso” e do “bom gosto”, os adultos “sabedores”, cochicham entre si a rir, alarves e zombeteiros, quando veem estas crianças crescidas moldadas a uma obrigação, derreadas sob o peso da mesquinhez diária. Seja como for, nunca lhes distribuem um papel de preponderância, nunca lhes destinam uma responsabilidade social… - Porque nunca se poderá fazer uma ideia (pensam) de quando estas crianças crescidas deixam o seu estado e começam a ser adultos. Isto é, quando começam a secar por dentro…
No seu cinismo de tábuas roçadas pelo desgaste do mal, a sociedade adulta chama-lhes desdenhosamente pobres de espírito, santos, poetas, sonhadores… E não lhe destina nada que não seja um emprego puído, um lugar de encosto que não incomode os “donos” da sociedade.
Subversivos pacíficos, estas crianças grandes vivem à margem, não se conseguem emoldurar no quadro social, sempre embebidos da seiva primordial e de azul! – São menos que nada quando vivos, mas uma vez mortos transbordam de interesse!
A sociedade do “bom senso” encontra então que a sua “insensatez” era filosófica, a sua ingenuidade de alma uma iluminação interior, espiritual, o seu infantilismo, afinal de contas, uma grande capacidade de sonho. Tudo isto porque, uma vez mortos, já não metem medo as suas ideias límpidas e profundas, e podem finalmente, portanto, ser erguidos e apontados exemplarmente. Em vida, são menos que nada, uma vez mortos, estes infantissão o húmus da terra, a voz com que Deus fala aos homens!
A estas “crianças” crescidas que o acaso faz viver de braços erguidos, seres admiráveis e misteriosos, labaredas de um fogo inicial que ninguém consegue explicar, é deles que nasce o que há de melhor no mundo!
É destas “crianças” crescidas que sai a poalha doirada que assusta os desfalecidos d’alma, e lhes provoca o riso cobarde de quem pretende esmagar pela dor…
Ser criança outra vez… Ter da infânciao perfume da liberdade de sonhar, é saber algo sobre o prodígio original… O lugar e o tempo da infância é, pois, por tudo isto, o lugar e o tempo onde todas as combinações ferozes são permitidas para matarem a capacidade de sonhar e de amar. A infância é o lugar onde se podem moldar seres humanos com medo da sociedade e, por isso, prestáveis e obedientes…
Conservar a infância vida fora é continuar desobediente, e ser capaz de ajudar outras “crianças” crescidas a mudar a sociedade… Conservar a infânciaé ser perigoso!