No passado mês de Setembro, a Assembleia Municipal de Évora tomou, a propósito do projecto mineiro da Boa Fé uma decisão (publicada neste blogue) que faz história, por várias razões: a decisão de não declarar de “Interesse Municipal” o projecto da Colt Resources.
A decisão é histórica, em primeiro lugar, porque é unânime, numa Assembleia em que são raras as questões que conseguem ultrapassar as (legítimas) divergências entre partidos nela representados, e até as divergências que resultam de puros cálculos tácticos partidários.
A decisão é histórica, em segundo lugar, porque coincide com idêntica decisão da Assembleia Municipal de Montemor-o-Novo, onde a mesma unanimidade se manifestou.
A decisão é histórica, em terceiro lugar, porque ela resulta da mudança radical de posição dos dois partidos que tiveram responsabilidades na aprovação das primeiras fases do projecto mineiro: o Partido Socialista em Évora e o Partido Comunista em Montemor (decisões em 2010-2011). O que nesta situação assume carácter histórico é a capacidade desses dois partidos, maioritários nas respectivas câmaras nessa altura, para evitarem o reflexo normal e habitual, de persistirem nas suas posições por preocupações com a coerência dos seus discursos. Voltar atrás, mudar de opinião a propósito dum projecto, é sempre difícil para uma organização, porque mudar de opinião equivale a admitir que o decisor se enganou. No caso presente, todavia, esse voltar atrás honra os partidos que admitem o erro. Este erro nada tem de vergonhoso ou de humilhante. O projecto apresentado pela Colt é muito complexo, com variadas características técnicas cujo cálculo e cuja compreensão são difíceis, e as autarquias não têm experiência na avaliação de projectos mineiros. Quanto aos aspectos financeiros, eles foram cuidadosamente “embrulhados” pela companhia mineira, apresentando cálculos inverificáveis, promessas e perspectivas de desenvolvimento aparentemente aliciantes (o emprego!), num conjunto de documentação cuja leitura foi tornada cada vez mais difícil à medida que o processo avançava. Quanto aos aspectos ambientais e humanos, a empresa apresentou constantemente informações falsas ou enviesadas, minimizando riscos e ocultando custos para o ambiente, para as populações e para as autarquias.
Em resumo, é muito provável que as decisões favoráveis tomadas pelas duas Câmaras nos anos 2009-2013 tenham resultado da carência duma informação completa e idónea sobre os custos, os riscos e os eventuais benefícios do projecto: e não foi certamente a empresa que se esforçou por fornecer essa informação idónea.
Por fim, e sem qualquer dúvida principalmente, a decisão de recusar a qualificação do projecto como Projecto de Interesse Municipal é histórica porque marca o primeiro passo para o abandono dum projecto que, a ser realizado, seria a maior catástrofe ambiental e humana de sempre nesta região.
Enquanto a CME reunia e estudava o projecto, aconteceu em 4 de Agosto de 2014, no Canadá (British Columbia) mais uma dessas catástrofes “impossíveis”: o dique da barragem de rejeitados de Mount Polley cedeu, atirando para as terras, os cursos de água e as localidades a juzante cerca de cinco milhões de metros cúbicos de lamas tóxicas (por comparação, na Boa Fé a empresa previa armazenar na barragem cerca de 10 milhões de metros cúbicos de rejeitados). As autoridades canadianas que de início minimizaram as consequências do derrame proibiram alguns dias depois toda e qualquer utilização das águas de rios, poços e fontes numa vasta área.
(Ver, p.ex.: http://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/mount-polley-mine-tailings-pond-breach-called-environmental-disaster-1.2727171 ).
Um dos engenheiros reponsáveis pela mina e pela barragem (não pelo desastre, claro, que não tem “responsáveis”!) declarou: “Se há quinze dias atrás me tivessem disto que isto iria acontecer, eu teria respondido que é impossível”. O engenheiro clama a sua boa-fé: ele agiu na crença firme de que não havia risco de desmoronamento do paredão. A lição que convém tirar de mais este exemplo é que não é preciso que os responsáveis das minas mintam quanto aos riscos que provocam, para nos enganarem: mesmo quando “acreditam” que tais riscos não existem… eles colocam as colectividades perante riscos que são ainda mais prováveis… porque eles crêem que esses riscos e desastres são impossíveis. Apesar da multiplicação de desastres desta mesma natureza (dezenas cada ano), o interesse profissional, económico, a pressão financeira e até política impede que a realidade da frequência desses acidentes desminta as “crenças” dos engenheiros.
A CM Évora e a CM Montemor fizeram história. Penso que os cidadãos e em especial os munícipes da região devem ter consciência que algo de importante foi realizado a bem do interesse de todos. A partida não está ganha, porque outros “valores mais altos se alevantam”: o ministério e o governo actuais, o mundo da finança e da especulação mineira, verdadeiro polvo que tem os seus homens bem colocados no próprio aparelho dos Estados (a começar pelo nosso), não vão certamente ficar inertes.
Mas todos aqui estaremos para fazer, na medida das nossas possibilidades (que ainda que pequenas, são o que temos), o nosso dever de esclarecer os nossos concidadãos sobre as consequências que teria esse projecto, publicitar as cumplicidades e os atropelos ao interesse geral em benefício de obscuros interesses particulares.
José Rodrigues dos Santos,
Évora, 8 de Outubro de 2014. (enviado por mail)