A ideia parece absurda: não são Gaza e os seus habitantes, não é o Hamas que está encurralado por Israel no enclave que se tornou campo de concentração ou pelo menos prisão ao ar "livre"?
Se considerarmos a situação e a relação de forças militares, é claro que quem está "encurralado"é o Hamas. Mas a maior parte dos jornalistas que vão dando notícias e até dos analistas, esquecem o conceito básico do Clausewitz: "a guerra é noventa por cento política e dez por cento militar", escrevia ele mais ou menos.
Do ponto de vista militar, a desproporção das forças dificilmente poderia ser maior e é tão óbvia que nem vale a pena evocar o armamento ofensivo de Israel, e o seu "Domo de Ferro" defensivo, que intercepta 99% dos roquetes artesanais disparados pelos Palestinianos de Gaza. A chamada "retaliação" por Israel por cada disparo do Hamas (mesmo que não provoque vítimas nem estragos) é de tal ordem, que a contagem das vítimas (90% de civis, como não podia deixar de ser bombardeando cidades) mal consegue dar a medida da disparidade: mais de 2000 mortos e dezenas de milhares de feridos, milhares de habitações destruídas do lado Palestiniano, 67 mortos dos quais 3 civis (ou agora 4, com a morte duma criança israelita) do lado de Israel.
Perante esta realidade terrível, torna-se difícil entender que o Hamas negoceie de modo tão firme, sem renunciar à sua reivindicação principal - o fim do cerco ao enclave - e tome até a iniciativa de romper as tréguas. Cada novo "rocket" artesanal desencadeia dezenas de raides israelitas e dezenas de mortos em Gaza. Mas interpretar a resistência do Hamas e a continuação do combate como simples sinal do seu fanatismo é demasiado fácil, e sobretudo é falso.
Sem retomar a visão estratégica de Israel desde a sua formação, uma coisa é clara: Israel, que se fundara com a ideia sionista de dar um porto de abrigo aos Judeus perseguidos, fechou-os num território rodeado de vizinhos que soube tornar seus inimigos. A sua história é um longo caminho de armamento (incluindo o nuclear), de militarização cada vez mais profunda da sociedade israelita, e uma subordinação do conjunto das vidas sociais e individuais à paranóia anti-palestiniana. Árabes "do interior" - cidadãos de Israel, ou do exterior (territórios ocupados e/ou anexados), dos países limítrofes, Israel vive no estado de espírito e na realidade do encurralamento. Este tem sido o principal argumento dos extremistas judeus: é matar ou morrer, o estado de guerra é permanente.
Voltemos a Gaza, onde mais dum milhão e meio de habitantes sobrevive em condições terríveis e à estratégia do Hamas. Essa organização sabe muito bem que por cada foguete disparado Israel dará uma resposta desproporcionada: por cada disparo, dezenas de mortos e feridos. Será o Hamas louco? Depois de mais de 2000 mortos, ainda não compreendeu que Israel pode esmagar o enclave? Que os bombardeamentos de cidades e zonas habitacionais, e até escolas da ONU, que poderiam desencadear uma reação maciça da opinião mundial, apenas têm provocado reacções limitadas? O Hamas, em meu entender, sabe tudo isso. Se ele prossegue os tiros, mesmo sem qualquer resultado militar ou outro, sabendo que Israel vai esmagar mais bairros e casa sob as bombas, é porque para ele o limite se encontra do lado israelita e não do lado palestiniano. Esse limite é o extermínio total dos gazauis. Ora, se a "opinião mundial" reage pouco a dois mil mortos, há um limite que, ao aproximar-se, fará bascular a situação de modo radical. Ao atirar cada novo foguetão, ao recusar a trégua, o Hamas encurrala Israel na sua própria táctica: resposta desproporcionada, automática, sempre idêntica. Bombardear mais, destruir mais casas, mais infraestruturas, matar mais combatentes e mais civis: impor um "preço" muito alto ao inimigo. A hipótese que está por trás desta táctica é a de que a população civil possa acabar por atribuir ao Hamas e à sua "intransigência" os terríveis custos humanos que suporta, desligando-se dele e, quiçá, opondo-se a ele. É difícil ignorar (e supor que os militares israelitas ignoram) que o que se passa em Gaza é precisamente o contrário. Perante o excesso de violência, a desproporção das "retaliações", a crueldade de que dão provas os militares quando invadem, humilham, matam, os habitantes de Gaza acabam (mesmo os que não eram partidários do Hamas) por reconhecer que é essa organização que representa o seu desespero, a sua última dignidade, a resistência. Já Lawrence da Arábia dizia que era um erro tremendo subestimar os combatentes árabes (indisciplinados, imprevisíveis) quando eles estão nas situações de combate por vezes sem saída: são combatentes terríveis.
Ao adoptar uma estratégia que consiste em afirmar (e demonstrar) que estão prontos a morrer, todos, se necessário, que é a estratégia que T. Schelling designava como a "do louco" (sou louco, estou pronto a tudo, não calculo perdas, nem o que quer que seja), o Hamas encurrala Israel na sua própria lógica: retaliar sem fim e sempre mais violentamente. O Hamas sabe, como nós sabemos, que o extermínio (que pode não estar tão longe) da população inteira de Gaza é inaceitável para o mundo; o que Israel não quer saber, é que esse genocídio é "aceitável" para os Gazauis. Entendamos-nos: que eles estão prontos a morrer, TODOS, se for preciso.
Então e qual é a visão estratégica, política, dos dirigentes do estado de Israel? A resposta é: não têm. A táctica (retaliar, esmagar) tem lugar de estratégia. Como vêem eles, no futuro, uma situação política mais estável, mais aceitável para Israel, em relação aos Gazauis? Não vêem. Com aquela população nunca mais haverá nada a fazer.
As potências ocidentais compreenderam o que Israel não quer ver e insistem fortemente em conseguir e preservar as "tréguas", de modo a parar a escalada ISRAELITA já que o Hamas dificilmente pode fazer mais do que faz: uns foguetões artesanais aqui ou ali. Mas o Hamas entendeu (e é um entendimento aterrador para quem observa de fora), que as "tréguas" apenas jogam a favor de Israel; por isso as rompem e romperão qualquer que seja o custo, de modo a não deixar sair Israel da sua lógica binária: foguetão --> raids aéreos, invasão, etc. Israel, na verdade, ficou sem alternativas. Não aceita negociar o que para o inimigo é essencial - vital. Não tem solução política a propor. 60% dos Israelitas judeus são contra a solução dos "dois estados" e 70% seriam favoráveis à deportação massiva de todos os Árabes do "grande Israel" (incluindo Gaza, Cisjordânia, Golan e dos próprios concidadãos árabes israelitas).
Resta como único horizonte, meramente táctico, o esmagamento, esperando que a população se revolte... contra o Hamas. Mas este adquire uma legitimidade acrescida a cada raide, a cada morto e a cada ferido. Israel "promete" vingança terrível DA criança israelita morta nestes dias. O desprezo pelo inimigo, que espera pelo momento de vingar as centenas de crianças mortas pelos bombardeamentos israelitas, FECHA o Estado de Israel numa fortaleza mental que a táctica do Hamas tende a reforçar cada dia. A evidência impõe-se: Israel NÃO PODE deixar de ripostar de maneira cada vez mais forte a cada... morteiro do Hamas. O Hamas IMPÕE a escalada a Israel, cuja população exige que o "castigo" seja sempre mais mortífero. Mas a realidade interna do ódio aos "Árabes" (que tantos testemunhos credíveis sublinham), que empurra o governo militar israelita para acções cada vez mais extremas ("Chumbo Endurecido" parecia ser um limite: não era; o que está a ocorrer é pior), essa realidade interna entala o Estado de Israel na NECESSIDADE da escalada sem fim, entre o desejo de extermínio, a irredutibilidade da resistência palestiniana e do Hamas e a IMPOSSIBILIDADE (moral, política) da única "solução final" que se perfila, a destruição do milhão e meio de Gazauís.
Os Judeus de Israel e de outros sítios, fariam bem em recordar Massada: cercados no cimo dum estreito planalto no ano 70 d.C., os Judeus preferiram morrer em vez de se renderem aos Romanos. Lembrar Massada traz uma dupla lição: uma colectividade perseguida pode no seu todo suicidar-se, preferindo a morte à indignidade - assim Gaza. Mas a outra escala, é o Estado de Israel que está cercado, e constrói uma fortaleza inexpugnável. contra tudo e contra todos: táctica eficaz, estratégia suicidária.
Cercado pela sua superioridade militar, pelas fronteiras invisíveis do desprezo pelos vizinhos Árabes, Israel esqueceu-se de Massada.
JRdS
Évora, 23 de Agosto de 2014. (por email)