As figuras ligadas à cultura são notícia de abertura de noticiário em dois momentos distintos. Quando morrem ou são homenageadas a título póstumo, ou quando obtêm reconhecimento internacional.
Esta semana tivemos as duas situações, com a trasladação de Sophia para o Panteão e com a atribuição a Carlos do Carmo de um prémio atribuído pela Latin Academy of Recording Arts and Sciences pela sua carreira ao serviço da música.
Dos mortos não se diz mal e enaltecem-se as suas qualidades, mesmo os que nunca leram uma só palavra ou os que lendo muitas palavras não lhe retiraram nenhum sentido. Vendem-se livros apenas porque se sentiu naquele momento a curiosidade de saber por que carga de água tanta gente elogia o génio da falecida.
O cantor, tantas vezes ostracizado das rádios e televisões, teve direito a um dia inteiro de elogios com a sua fantástica voz a ecoar nos nossos ouvidos. Tudo isto porque, numa visão provinciana, é um português reconhecido “lá fora” e ainda por cima este “lá fora” é o centro do império.
Nas cerimónias de trasladação de Sophia ouvimos discursos emocionados, citações de poemas seus, o enaltecer da poetisa como símbolo da cultura do país. Discursos que saem da boca dos que são incapazes de alocar 1% do Orçamento de Estado à cultura e que tratam os criadores como párias que querem uma fatia dos nossos impostos para fazerem coisas sem terem em conta o gosto dominante, não querendo perceber que a cultura ou é paga por todos ou apenas uns poucos a ela conseguem aceder.
Claro que numa sociedade onde se educa para a “empregabilidade” e se instroem gerações para as necessidades dos “mercados”, o resultado será sempre a incompreensão da maioria perante a importância das artes e da cultura na educação integral dos seres humanos.
Disse Sophia: “a cultura é cara, a incultura é mais cara ainda”. Tão cara, diria eu, que produz mais consumidores que cidadãos e gente insuspeita capaz da argumentação mais básica colocando em alternativa aquilo que não pode estar em alternativa.
Fechar os olhos e ouvir a “Estrela da Tarde” na voz de Carlos do Carmo, percebendo todas as sílabas do poema de Ary, poderá ser colocado como alternativa a qualquer outra coisa, ou será sempre algo que nos completa?
E a cultura enraizada nas tradições populares, poderá ser varrida para debaixo do tapete ou engolida pelo entretenimento de massas?
Poderemos perceber-nos no mundo, para além da sobrevivência, se não nos conseguirmos emocionar, ainda que em dimensões diferentes, sonhando ser “o pirata“ fotografado pela sensível lente de Sophia?
“Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.”
Já sei, já sei… como diria o outro, que felizmente se reformou, tudo isto são coisas de elitistas que se custam a perceber, cultura é a Arena cheia para aplaudir o Tony Carreira.
Até para a semana
Eduardo Luciano (crónica na rádio diana)